domingo, 23 de maio de 2010

DIÁLOGO ALCOÓLICO.

Cansado de realizar ações sozinho. Cansado de evitar parcerias – tenho a experiência de ser excluído da maioria que estabeleço.
Conversei com Arthur – o suposto irmão – e com Bia – a suposta prima Bittencourt. Convertemo-nos em pseudo-artistas-super-heróis: unimos forças. Assim decidimos uma produção coletiva. Como unificar três cabeças, que tão bem se enquadravam, com três produções que seguiam em rotas opostas? A solução comum foi o vídeo.
Bia poética, Arthur Noir, eu corporal e na obsessão de estar presente nos trabalhos expostos.
Preto e Branco. Época de morangos mofados de Caio Fernando de Abreu. Eu e Arthur em cena. Bia por trás da lente.
Eu e irmão resolvemos tomar uma garrafa inteira de vodca em menos de uma hora enquanto a sóbria Bia registrava a coisa. Todas estas metas foram cumpridas enquanto minha realidade ficava tão descolorida quanto o efeito da filmagem. Eu e irmão deveríamos conversar, ato banal e tradicional, principalmente regado pelo etílico, mas não conseguimos (ou eu não consegui). Ato comum que, quando vira projeto, me engesso. Não via naturalidade alguma naquilo... E gostava disso. Já que resolvemos que o produto final não deveria ter som (escolha aleatória e, com sucesso, de grande efeito), resolvi, enquanto olhava pro irmão, conversar com Bia – que não tinha muito papo. Não tinha muito papo... Você também não teria, sóbrio e filmando dois bêbados em PB.
Passa uma hora, a coisa “acaba”. Disto para frente pouquíssimo recordo. Arthur recebeu visita e papeou horas sabe cosmos como. Eu dormi em cama e em quarto que não me pertenciam e, neles, vomitei. Nada disso registrado, ao menos em imagens.  Saímos, fomos para o lançamento de um livro medíocre na livraria cultura e lá resolvi ficar me tacando no chão, até não aguentar mais, roubando a cena da coisa toda.
Chega a dona do quarto, com meus antigos dejetos estomacais, outro dia e me pergunta o porquê do cheiro de chocolate no quarto dela. Eu me pergunto que chocolate ela comia(!). Menti, culpei Bia – já que a dona do quarto jamais a via, ao contrário de mim.  Bia já me desculpou (creio eu). A dona do quarto mudou de cidade. O vídeo ficou bom. (Ao contrário de outra brincadeira que nós três fizemos com um sofá tempinhos depois).
OBS: Pra (tentar) amenizar a situação pós-vodca, imediatamente após as filmagens, Bia nos comprou picolés de chocolate. Estavam ótimos.

ABREU, Caio Fernando, Morangos Mofados, Brasiliense S.A., São Paulo, 1987.

terça-feira, 18 de maio de 2010

JOÃO.

Eu o conheci no lixão. Podre, úmido, mofado, largado lá. Mesmo assim imponente, firme e resistente às intempéries naturais da natureza de sua vida. Eu já vinha pensando em valores sobre adoção por um bom tempo. Tive ali a opção e, ele, sua apresentação. Acolhi, banhei, lapidei e, por um longo período, independente do peso, não conseguia sair sem ele... nem sem apresentá-lo. Acoplado, novo comparsa e amigo silencioso era ele, João.
Irônico o surgimento repentino dele em momentos de muita solidão minha. Encontros, soluções matemáticas para compor almas solitárias. Creio bem que fomos assim um para o outro. Minha primeira vez de batizar alguém, João, que por muitos foi elogiado por sua gama de possibilidades de interpretação pelo nome. Fosse corriqueiro, bíblico, entre outros etecéteras analógicos, para mim era só um nome e coisa nova. E, ainda assim, não era SÓ isso, era demais.
Tomamos cafés criticados pela sociedade ao redor, vimos palestras, nas quais ele nunca se permitiu colocar sua opinião – ou sim... visto que o silêncio tem lá suas grandes potências. Muito sol que ele carregou tomando em minha (nossa) varanda, o que o levou no tom de pele marronzinho que ainda permanece.
Uma amiga resolveu ir pra Espanha. Não me recordo bem porque o João se escondeu no porta-malas dela. Talvez uma dessas pós-tardes lisérgicas com Joanar.  João se escondeu em uma bolsa de viagem, fugiu de mim e tornou-se anônimo internacional. Triste fiquei e, tempos depois, esqueci – ou fiz de conta que.
Passaram-se quatro anos daquela fuga.
No meio de um trabalho em um lugar quase abandonado aonde, ultimamente, passo todas as tardes mofando e vendo a cor do dia mudar até pegar o meu microônibus de volta pra casa de meus temores, lá estava ele no dia de ontem: desgastado, com seu nome apagado, molhado, mofado, na tentativa de um novo cuidado e abrigo. Costumo ser bem rancoroso. Com João, jamais poderia ser.
Limpei, acolhi, sequei, limpei e renovei seu nome.
O tenho de volta e, agora, ele não me escapa mais. Nem eu dele.
Prazer, de novo, João.


terça-feira, 11 de maio de 2010

DESFORME.

Joana, ou JOANAR. Esse era o nome artístico que a moça resolveu se titular por remeter, ao mesmo tempo, a um verbo quanto ao seu nome. Identidade ativa. Joanar foi daquelas amizades de explosiva intensidade e que te levam para lugares incomuns, obscuros, estranhos... E deliciosos. A moça licenciada e este moço aqui bacharel. Joanar tinha problemas de conceitualização. Eu tinha problemas de libertação. Nosso relacionamento apaixonado e sem sexo foi inaugurado em 2005.
Igualdade dos fatores vitais (lembrando de Arthur Araújo): aproximamos-nos com corações partidos em tardes de brincadeiras alucinógenas no parque do Ibirapuera. Grudamos, permanecemos. Sempre visitava sua vila, aonde se encontrava sua casa de arquitetura e decoração espanhola nos jardins, SP. Uma destas visitas foi marinada com um convite ousado (nada menos a se esperar de Joanar): leves doses de Johnnie Walker e uma lata de tinta serigráfica branca que a moça havia roubado da faculdade. Bebemos, nos despimos e passamos a tinta em todos cantos e orifícios existentes em nós. Brancos. Bêbados. Serigrafados.
Uma câmera Cannon na mão e fotos de nossa modificação de estado alcoólico e material (a tinta nos envermelhecia a pele, os olhos e a mente). Surpresa na nossa capacidade de foco nas fotos com a falta de foco na visão.
Domingo, dia seguinte. Banho com sabonete líquido que, em sua sofisticação de produto e uso, nada tem de praticidade quando se pretende tirar nacos secos de tinta de seus pêlos e buracos. Joanar me visita com uma maleta (contendo todo material artístico básico que se imagine – lápis, caneta, fitas adesivas, guaches, pincéis, papéis, colas, tesouras, barbantes e por aí estrada afora) e uma nova proposta: encontrar uma caçamba com muitos dejetos na Oscar Freire e oferecer estes materiais, junto às ferramentas da maleta, para que crianças de rua produzissem o que quisessem. O que pretendíamos como uma generosidade lúdica e, também, um ataque à circulação burguesa do local, tornou-se triunfo e falha, mas tudo em campos positivos.
Triunfo: muitos garotos(as) de rua produziram e expuseram seus resultados na calçada na frente da M. Officer. Falha positiva: os burgueses resolveram comprar tudo, por afeto, caridade e outros motivos irreconhecíveis. Demos toda a arrecadação, igualmente dividida, para as crianças.
Queríamos tentar um concurso visual com este trabalho. Por fim, resolvemos que a bebedeira e a tinta serigráfica teriam, talvez, mais potência do que o trabalho caridoso. Talvez menos potente de sentimento e intenção mas, talvez, mais forte visualmente.
Mundo injusto?
Nós acertamos na escolha.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

LÁPIS-CORPO.

Andava repensando a trajetória de alguns encontros passados banais que, hoje, se consolidam como grandes pérolas. Pensei em um moço, Arthur Araújo, colega até o momento que aqui coloco. A felicidade embutida na tristeza: aproximamos-nos quando eu perdi meu menino e ele sua garota. Na lacuna, então em branco, de companheirismo, encontramos amizade.
Noitadas repetidas, diárias e de perca de saliva; não só pelos incontáveis e longos papos sobre arte, vida (dissociáveis?), relações e todos esses etecéteras supérfluos... e tão relevantes, mas, também, pelas doses de vodca que inspiravam e esticavam estas situações. Quanto mais manhávamos sobre nossas perdas, de forma torta, mais nos aproximávamos.  E assim foi por meses. Amizade, ressaca.
Pensava sobre minhas limitações físicas e a tudo que tinha me submetido. Não queria mais me machucar. Não queria mais sofrer. Não tinha força nos meus ideais. Perambulava doido para produzir mais alguma coisa que me atingisse... e doesse! Conversávamos, uma noite bêbada dessas, sobre como tudo que eu atacava respondia da mesma forma: não sofria a mínima lesão e me destroçava. Não pretendia evitar este auto-destroçamento mas, concomitantemente, queria conseguir infligir a coisa que fosse que eu estivesse atacando. Sou atacado, mas quero agredir também.
Andava, ainda ando com os mesmos calçados de reflexão, com o impulso e a intransigência de sempre usar a mesma roupa preta para tudo que pretendia apresentar aqui ou ali. Pensava em atacar algo que fosse, ao menos visualmente, como eu. Cor de pele, roupa preta. Fui longe nisso... Pensei em baleias orca, fraques, pingüins, ursos panda e me incomodava, cada vez mais, por essa fissura com a fauna – o que não me interessava nem um por cento na época. Resolvi esquecer estes pensamentos.
Outra noitada de vodca e brincava com um lápis. Impressiona-me ainda como as soluções estão sempre logo ali, sempre óbvias, e este meu (talvez nosso) cérebro se nega a processar o que é simples. Percebia, provavelmente em visão dupla e embriagada, o lápis: preto, madeira... algo próximo à minha cor de pele. Tinha achado meu irmão gêmeo de diferente natureza material.
Estratégias para atingir um lápis. Sempre pensei em espaços, lugares, algo em que eu fosse parte minúscula ou, ao menos, inclusiva naquele ambiente. Um lápis...muito abaixo de mim. Covarde eu de atacá-lo e, além disso, como algo desta dimensão poderia me machucar sem que eu o enfiasse em mim ou alguma ação do tipo, que fosse fora do costume do comportamento e uso de um lápis?
Ponta ruim. Aponto o lápis. Encontro poesia em uma ação simples: consegui agredir o lápis em seu costume de função comum. Mas isto, fisicamente, não me atinge. Até onde eu iria se esse lápis tivesse umas 10 vezes a mais, aproximadamente, o seu tamanho? Resolvi apontar 150.
Bolhas, sangue na mão, tremedeira na mão, câimbra na mão. Muito grafite. Muito desgaste; em amplos sentidos.